sábado, 23 de maio de 2009

EU,CIDADÃO-MILITAR, ME APRESENTO (III) -A COMPANHIA DO CAVUNGO E O FOGO AMIGO!?...

O- Bolinha Vermelha

Dedico e conto esta pequena história aos civis que nunca foram militares, e aos civis que um dia o foram e aos meus caros camaradas.

Recordo a memória do Brigadeiro Themudo Vera que tendo sido mandado pelo Governo de Salazar para verificar se havia escravidão nas roças se São Tomé e Príncipe, depois de ter escrito à mulher que aquilo por lá era uma podridão, embarcará de regresso a Lisboa, mas nunca cá chegará, para uns foi suicídio, para outros homicídio, mas para todo o sempre o silêncio.

Devo acrescentar que em Lumbala-Velha só estávamos nós, os militares, o mangueiral e o grande rio Zambeze, na outra margem a uma certa distância ficava Lumbala-Nova.

Em Cavungo pelo jogo que todos, hoje, muito à vontade, consideram sujo ,também a UNITA faria, por nós, a guerra contra o MPLA, mas disto nada sabia, mas, hoje, pergunto-me, mas será que este sujo jogo não teve reflexos na guerra civil que se seguiu à descolonização?

Fomentamos o ódio e a divisão numa guerra que todos sabiam perdida, e, então, o pós retirada nunca foi pensado, então, queria-se fazer de Savimbi Governador do Bié e negociava-se com ele dando-lhe rebuçados para a tosse, mas como foi isto possível?


COMPANHIA DO CAVUNGO

Como já tinha referido deixo Lumbala amargurado, era amigo de toda aquela gente e parto para o Cavungo. Ficou também por aquelas paragens, pela Lumbala, um simpático cromo desta guerra, o grande carregador, por tal, conhecido como GMS. Indivíduo negro de quem todos gostávamos não só porque nas operações carregava os nossos sacos de bagagem, o que dava um grande jeito, sobretudo para quem queria levar algumas reservas, que, para alguns, era cerveja, mas também porque era muito extrovertido e muito chato, estava sempre a cravar qualquer coisa.

No Cavungo a mesma rotina, mas dei com um sinal da presença de um artilheiro amigo. Por lá havia umas pinturas do Carita, à altura tenente ou capitão. (Carita que no Curso de Promoção a Oficial Superior antecipou a cena chinesa da praça de Tinamene- um jovem de braços abertos a fazer frente a uma coluna de blindados. Nestes preparos pôs-me o Carita, numa caricatura que guardo como um tesouro. Um jovem capitão que com a sua pistola à cinta e com um grito horrendo de artilheiro põe em debandada toda a coluna inimiga que se rende. Muito obrigado Carita, hoje coronel, professor doutor na Madeira e completamente rendido aos encantos da Ilha e não só).

Aquela pintura era um bom sinal, se ele pintava, era porque a coisa não era tão má. Para quem vinha de uma companhia com o capitão com baixa psiquiátrica, era óptimo.

No meu primeiro serviço de Oficial de Dia constatei que o pessoal andava mal habituado, e que, por isso, ia ter problemas. Surgiram, mas resolvi-os. Na guerra não fiz de conta que não haviam problemas disciplinares, quando os houve resolvi-os, não temi nenhuma bala assassina, até porque quem o fizesse seria executado pela maioria dos outros, com quem sempre me dei muito bem, um par entre pares

Aqui contactei com os katangas ( refugiados do Gongo ao serviço do exército português) do Cazombo, pobres, desgraçados e com uns ridículos galões de oficial que lhes dava acesso à messe de oficiais, mas, onde, tinham de cravar tudo, porque não tinham dinheiro para coisa nenhuma. Um espectáculo ridículo, uma farsa, uma afronta à dignidade Humana.

Nesta companhia, o capitão, na minha primeira operação, estranhamente, mandou-me comandar dois grupos rivais de Grupos Especiais –GE- (civis negros armados para participarem em operações militares, como militares, mas que não o eram de nenhum ponto de vista: formal ou substantivo ), para a zona de acção de uma companhia de outro batalhão.

Por mera casualidade, ou por inspiração da minha madrinha que está nos céus, passei pela companhia do outro batalhão, onde, me foi dito que se não os tivéssemos contactado, poderíamos ter sido batidos a fogo.

A missão era estranha fazer com 40 homens emboscadas num extensa área de quilómetros. A força era toda de negros à excepção de mim, um furriel e o soldado das transmissões. Achei e continuo a achar muito pouco canónica esta operação. Não sei, porque carga de água um maçarico iria comandar uma tropa tão complexa que nem sequer falava português e nenhum de nós lueno?!... Enfim, coisas!….

Apontamento de farrapos de memória sobre esta operação:

“ A operação foi na zona do marco 25, rio Catangula, saliente do Cazombo, com a duração de 4 dias.
A tropa que comandei logo de inicio me desagradou por ser pouco disciplinada e o seu comandante, o Levi, ser um sorna de primeira apanha….
… Neste primeiro dia senti-me perfeitamente à vontade na mata, como se fosse um antigo e velho veterano….
“ ….Durante todo este santo dia ( 28 Janeiro 72) lá tive de aturar a ave negra do comandante dos GE, que dizia que desconhecia a zona, para depois afirmar que estávamos a não sei quantos quilómetros da picada, o que muito me irritou, e levou a maldizer a minha sorte, por ter de comandar estes tipos. Só tinham duas qualidades: muito bom ouvido e uma velocidade de marcha terrível, e nada mais…..
A partir do 2º dia depois de ter efectuado uma evacuação de um militar mordido supostamente por uma cobra de água, não tínhamos nenhum antídoto, fiquei sem meios rádio, de que não voltei a ser reabastecido, situação muito complicada em caso de contacto directo ou de haver feridos”…


Sobre o regresso:

“ O regresso é deveras uma sensação extremamente agradável: É uma alegria nostálgica que nos invade, e nos transmite uma mensagem de exaltação e uma sensação de bem-estar moral e psicológico. Sentimo-nos talvez mais homens, mais realizados, porque algo nos diz que mais uma etapa de um duro dever está cumprida, e, talvez para além disto tudo, haja aquela alegria, porque todos quantos foram, regressaram ilesos”.

Nesta operação porque comi em excesso saladas de frutas, trocava os atuns por conservas de frutas com os negros, andei 2 dias com as calças na mão, e com um grande receio de ser apanhado à unha, pelos tais turras, em pose menos guerreira e borrado. Enfim, coisas!....

FOGO AMIGO

No regresso e, já, numa coluna comandada pelo capitão, julga-se ter avistado um grupo de guerrilheiros no capim, qualquer negro for das sanzalas para que foram obrigados a irem, seriam, logo, considerados “turras”.

O capitão fica na picada, já lhe faltavam pernas para andar em perseguições. Tomo conta do grupo que se meteu pelo capim, mas um furriel que ficou na picada achou por bem fazer a sua guerra, e disparou morteiros.

Soube o que era essa coisa do fogo amigo, nós chamávamos na versão soft grande ca…. ao furriel que nos ia dando cabo do “canastro”. A barreira de morteiros susteve o nosso avanço, e permitiu que o nosso suposto inimigo fugisse.

Chegado ao Quartel soube que Lumbala Velha fora bombardeada com morteiros que na sua maioria não ultrapassaram o arame farpado, e não houve consequências. Aquilo também era “toma lá disto, e vamos embora que se faz tarde”. Enfim, coisas!……

Os convívios nesta companhia do Cavungo eram agradáveis, assim aconteceu com a visita do oficial de operações. Em honra do Sr. tivemos rancho melhorado, tendo os oficiais e sargentos almoçado na mesma mesa, eu fui mandado para uma das cabeceiras e lamentei a sorte de um catanga que não teve lugar na mesa, e que, por isso, poderia ver o seu quinhão mais encurtado, temia pela sorte dele, mas a minha foi idêntica.

Em 23 Janeiro 72 um condutor atropelou um catanga. Continuo a ser o preparador físico da equipa de futebol, que foi jogar a Lumbala –Velha. Ganhamos, tendo as comemorações corrido a expensas do meu bolso. Estivemos até às tantas da manhã, não deixei lá o vencimento, mas quase. Apesar das bebidas serem baratas, gastei 700 escudos, um dinheirão.

O pessoal reconhecido pela vitória e pela farra de borla, ao chegarmos a Cavungo cantou o bailinho da madeira, mal cantado, mas uma dádiva, naquelas paragens.

Em 9 de Fevereiro na casa do Administrador conheci a rainha dos Luenos que de facto era a autoridade gentílica a quem os negros obedeciam por respeito. As demais autoridades a temiam.

Nós sabíamos isto e no Cavungo quer as autoridades civis e religiosas da Igreja Protestante, quer as militares a tratavam com elevada cortesia, era o poder partilhado num ambiente de interculturlidade muito interessante, ampliado pela grande liberalidade nas relações sexuais, sem nenhum interdito. Este facto constituía um factor excepcional para o conforto psicológico, na minha opinião, decisivo,naquelas circunstãncias, para manutenção do bem-estar psicológico dos militares que muito contribuiu para se suportarem as muitas e severas agruras daquela guerra.

Uma outra das actividades de bem-estar psicológico era escrever cartas para tudo quanto era família e amigos e recebê-las. Era um bálsamo. Este serviço funcionava bastante bem. Também nunca abandonei a leitura de que ia tirando apontamentos

Em 10 de Fevereiro falo com o meu comandante de Batalhão ten-cor Borda de Água, chamado de outro modo na linguagem de caserna. Era simpático e educado, mas pareceu-me desmotivado e sem queda para o comando. Naquela altura não compreendia, nem sequer aceitava que pudesse haver um certo grau de desmotivação, então, era muito arrogante, reconheço-o, agora, mas só quando chegar à Damba, sede do batalhão no Norte, onde fui parar, falarei disto.

As coisas vão evoluindo, e, uma vez mais, sou enviado para outra companhia, agora, Mucaba, no norte de Angola, distrito de Carmona.

Mais uma vez lamento a minha sorte, já estava integrado na companhia, mas agora o capitão era, como oficial do QP, mais moderno que eu, tirou, na AM, o curso Especial de Oficial, tendo ficado à minha esquerda na lista de antiguidade, parece que não poderia ser meu comandante. Mais uma vez coisas… Como interpretá-las? Nunca soube, a minha falta de dotes para decifrar as coisas que vêm do Olimpo, sempre foi notável.

O capitão oferece-me um jantar de despedida, mas esta acontece, sobretudo na companhia dos soldados e sargentos, com canções e copos, o que deu lugar a gravações em cassetes.

Adeus Cavungo. Companheiros até Mucaba.


andrade da silva

4 comentários:

Marília Gonçalves disse...

Companheiro,
às EDITORAS

E porque não um livro de todas estas memórias. Apesar das situações que de outro modo contadas, seriam por vezes trágicas, quantas vezes, têm no seu dizer o sabor colorido que nos comove mas faz sorrir também
Memórias que além de suas são histórias do povo de Portugal de tantos jovens e de seu sofrimento e dos caminhos que levariam a Abril!
O nosso Magnifico Abril

abraço
Marília Gonçalves

andrade da silva disse...

Obrigado

Vamos caminhando. Haverá sóis.
abraço.

É verdade tudo aquilo foi trágico,mas por vezes teve os seus aspectos comigos e muito emotivos,ninguém seria capaz hoje de me imaginar ligado ao futebol, só sei que há onze jogadores de cada lado e um bola,que o Ronaldo ganha muito e o Benfica está mal, pois até aos anos 82 andei sempre envolvido nessas coisas e nos jornais de parede para estar sempre perto dos soldados, e a amizade fez milagres,porque as equipas que preparei ficaram sempre em 1º ou 2º e não eram as únicas.
abraço
asilva

Anónimo disse...

Efectivamente, quando há amizade há esperrança, paz e alegria e surgem, como diz, os milagres. Se no mundo houvesse mais amizade que bom seria!!!!!
Fernanda Neves

andrade da silva disse...

QUE BOM SERIA MAIS AMIZADE COOPERAÇÃO!

Não se entende porquê,mas assim parece não ser,mas até quando for posssível cultivemos o impossível.

Um abraço cara Dra. e amiga Fernanda. Envio-nos os seus poemas ou outro texto. Ficamos à espera.

abraço
asilva