terça-feira, 19 de maio de 2009

EU, CIDADÃO MILITAR, ME APRESENTO (II). CHEGADA AO TO DE ANGOLA



O - bolinha vermelha

UM FIM DE TIROCÍNIO TUMULTUOSO

O meu curso de artilharia recusou-se nos idos de 1970, a fazer um conjunto de provas desportivas no final do tirocínio, por quebra de promessas pelo Comando da Escola Prática de Artilharia. Fomos ameaçados, mas não fizemos as provas. Eu era o chefe de curso destes “heróis” ( E há para aí uns historiadores militares a dizer que o pessoal só tinha a consciência da dor física e da canhota – a querida G3).

Talvez aqui, ou talvez antes com as várias rupturas que fiz tivesse começado o meu 25 de Abril, embora, nesta altura, ainda acreditasse na Força e na Justeza do modo, como os superiores desígnios da Nação, eram realizados pelo Estado Novo.

Era nesta altura um humilde alferes de artilharia, que se apresenta, não era adivinho, nem nenhum génio militar. Era talvez um mediano alferes que em 1971 foi mandado para o TO de Angola para vencer a guerra.

Estava, mesmo, convencido que o podia fazer, porque os Alf Ribeiro Batista, António Pedro e eu próprio fomos durante muitos anos, antes da chegada do Amílcar Rodrigues à Escola Prática de Artilharia (desculpem a falta modéstia, coisa para que sou um pedaço voltado – quem confessa…-) os melhores instrutores de atiradores de artilharia, portanto, estávamos talhados só para vencer aquela guerra, conquanto o Pedro tivesse dúvidas, que eu não tinha, e o Batista já tivesse perdido um irmão na guerra.

De qualquer modo só podíamos ir fechar a coisa com chave de oiro, porque como por cá se dizia, a guerra estava ganha, como já o tinham dito em 1962, mas isto, então, não o sabia.


PARTIDA PARA O TEATRO DE OPERAÇÕES DE ANGOLA

O PENSAMENTO CHAVE: AMANHÃ, PODE SER DEMASIADAMENTE TARDE ( sobre uma imagem de cruzes de campas rasas ) estava fixo sobre a cabeceira da minha cama.



Parti para Angola, em Dezembro de 1971. A temperatura ambiente em Lisboa era de 13 graus. Eu, madeirense, estava todo encapotado, cheio de frio. A viagem foi nos TAM, (Transporte Aéreo Militar) muitas horas de voo, com o militar hospedeiro a entornar sobre o meu blusão de cabedal verde, o molho de um bacalhau, qualquer coisa - mau sinal ?!....


Chegada a Luanda. Um calor dos diabos, começa o striptease, e a sensação horrível que não havia ar para respirar, para quem já, então, sofria de sinusite, deu logo para entender que estaria “feito”, isto é, em maus lençóis. Passei uns dias nos Adidos com o Custódio Pereira, ele foi para o norte de Angola, eu para o Leste.


Fui colocado em Lumbala Velha, saliente o Cazombo, local das minas anti-carro, a carta de operações dizia-o. Cheguei a este fim do Mundo, a 21 de Dezembro, depois de viajar para o Luso e de uma viagem de avião do Luso para aqueles confins. A companhia de atiradores de artilharia já lá estava há meses.


Lumbala Velha estava situada na margem esquerda do rio Zambeze, no meio de um lindíssimo mangueiral, vivíamos em casas de madeira e dormíamos debaixo de mosquiteiros. Não havia água potável, e tomávamos banhos com os chuveirinhos de campanha que deixavam metade da sujidade. Estávamos isolados. Uma beleza ameaçada pela guerra.


Conhecia todos os graduados, de quem tinha sido o mestre, agora, eram eles os veteranos, e, eu, o maçarico. Coisas interessantes da vida dos Militares!… E uma grande prova de fogo e de verdade para quem foi instrutor e dos duros. Ganhei a alma e coração daqueles militares. Venci a maior prova dos nove a que um instrutor militar pode ser sujeito. Sabem os militares que é exactamente assim.


Logo na primeira noite eles quiseram dizer que eram os senhores da guerra. Durante a noite rebentou por tudo quanto era sítio uma fogachada tremenda, e ali, a regra era “fogo - cavar para os abrigos subterrâneos”. Com toda aquela confusão, escuridão e “cagaço” não dei com o caminho dos abrigos, e fiquei por ali, à beira de um colapso, ou de me borrar. Aguentei-me, nada mau!Os combatentes regressaram, tinha sido um falso alarme, mas era preciso estar atento. Não preguei olho mais naquela noite, porque os cães não se calaram durante todo o tempo, e depois ouvi sempre uns ruídos secos que me pareciam morteiros, mas como o meu companheiro de cubata dormia, que nem um anjo, fiquei sossegado.


Mais tarde descobri o sacana do mistério, eram as grandes mangas que ao caírem de maduras, esborrachando-se no chão faziam o car…. daquele ruído.Não fiquei muito contente comigo, afinal o que vinha para ganhar a guerra, ficou acordado por causa da porcaria de umas mangas. Para tanta “cagança” ( recordam-se este texto tem bolinha vermelha) era mau.

Alguns, mais filhos de uma mãe, há sempre gente desta, mas muito simpáticos, tinham bom olho clínico, e chamavam-me “Vaidade e Silva”. De facto tinha-a, considerava-me um aprendiz a grande cabo-de-guerra, talvez, um Rommel, admirava-o. Coisas, talvez sonhos, qiuçá?!...


Fui Comandar a companhia por baixa psiquiátrica do capitão que nunca conheci. Mais um sinal que queria dizer qualquer coisa, os capitães ficavam "cacimbados". (Todavia em 2008 nega-se a um capitão ter PTSD, porque fez tão bem a guerra e foi tão condecorado, logo não pode ter a doença dos fracos. Mas não é assim ….).


Recebemos, entretanto, a visita do Exmo. Sr. General Bettencourt Rodrigues. No encontro com o Sr. general disse-lhe que em termos tácticos estávamos a fazer tudo ao contrário, do que tinha aprendido na Academia Militar (AM), e do instruído aos oficiais e sargentos que agora estava a comandar.


Dava-lhe como exemplo o facto de transportar, numa zona de minas anti-carro, na viatura rebenta minas, uma velha GMS, dez ou 15 militares por falta de viaturas.Esperava uma frase histórica e galvanizadora de um general, recebi uma frase frouxa e burocrática, de que tínhamos de fazer a guerra com a escassez de meios que eu referia. Assim e só assim, um soco seco e mortal no estômago.


Não sabia,então, das negociatas com a UNITA, com esta a fazer a guerra por nós, podíamos passar ali umas férias, mas não havia bruxos. Foi este o meu baptismo, um frente a frente, sem tremer, nem pestanejar, perante um dos considerados Grandes Generais do Exército Português, então, não o sabia. Mas que pode saber destas coisas um alferes? Quase de certeza nada, mas fiquei vacinado, e esclarecido, isso sim.


Lumbala Velha era, de vez em quando, alvo de morteiros inimigos, pelo que, ainda, recebi um raspanete, porque um dos morteiros estaria mais chegado do que devia ao arame farpado, o que, para mim artilheiro, não era, assim, tão importante, como não fora para o capitão, mas como este tinha baixado à Psiquiatria, a sua organização do terreno e defensiva deveriam ter merecido depois cuidada atenção, que eu alferes, cheio de teoria e tino, não dei. Coisas!….


Depois deste encontro recebi guia de marcha para outra companhia do Batalhão, no Cavungo. Achei estranha a coincidência, mas como a minha tarefa era ser adjunto do comandante de companhia, acabei por achar que isto tinha alguma lógica.


Fiz por Lumbala algumas operações, cacei. Éramos reabastecidos por avião, quando não havia voos, faltavam os frescos, e, assim, para consoarmos em 1971 tivemos de caçar, caso contrário, seria arroz com salsichas.


Dei aulas regimentais, preparei fisicamente a equipa de futebol, tive de fazer frente a um soldado, o Sá, que ameaçava de morte toda a gente, talvez tivesse Stresse de Guerra (PTSD), mas ao confrontá-lo com o meu, ele deve ter considerado que o meu era pior que o dele, e passou a comportar-se bem. Enfim coisas!...


Gostava de estar com aquela malta, detestei a saída, e amaldiçoei a minha sorte. Depois de evitar a partida, lá tive de enfrentar a realidade e o 2º comandante que passo a apresentar:


Dia de Reis, 6 Janeiro 1972 " Farrapo de memórias:“


"Levantei-me pelas 8h, para ir falar ao 2º Cte do Batalhão, homem antipático, e muito pouco inteligente. Uma das grandes e muitas aber…… do nosso Exército. As suas primeiras palavras de boas vindas foram um raspanete (continua a ter muitos seguidores, exímios seguidores, brilhantes mesmos) por causa de não nos termos apresentado a sua Exa., aquando da nossa chegada na noite anterior.” ( extracto do diário)


Adeus Lumbala Velha. Até amanhã companheiros no Cavungo.


andrade da silva
Fim do 2º texto

7 comentários:

Marília Gonçalves disse...

Companheiro
Que grande voz se eleva através da sua, pareceu-me escutar todos os filhos, os jovens filhos de Portugal, em uníssono,corajosamente falarem de quanto sofreram e falarem do seu medo. O medo é uma reacção natural diante do perigo, a consciência da própria morte do ser humano ensina-lhe o medo como arma de defesa e de sobrevivência. O erro não é o medo mas sim a cobardia.
é a cobardia que é sinal de fraqueza, porque torna o medo vencedor. E pode fazer-nos corar de nós. Que triste situação de não nos podermos olhar num espelho sem vergonha.
Com tudo isto deixo aqui uma saudação aos Objectores de Consciência, que são também representantes um acto de coragem e de uma filosofia.
Desertores? depende de que guerra se trata, pode ser um acto de coragem se se negam a uma guerra ofensiva e injusta. E é decerto cobardia se se trata de uma guerra defensiva e onde a obrigação devia ser ditada pela consciência como o foi com a Resistência contra a Alemanha nazi

abraço

Marília Gonçalves

Estela disse...

Mangas/morteiros!?! Realmente, exageramos sempre o que não conhecemos!
Ui, o arroz com salsichas! As histórias que eu conheco desse divino petisco!!! :)
A PSPT é uma realidade, pena é que a maioria das pessoas, não sabe sequer o que é ouvir fogo real, quanto mais num TO! Enfim... Estranho seria se não se sentisse medo!...mas enfim, há pessoas que ao tentarem ser sobre-humanas se tornem inumanas...
Bj
Estela Landeiro

Anónimo disse...

Parabéns por ser sincero conosco e nos contar sua experiência. Ter medo é humano, não o ter inconsciência.
Fernanda Neves

andrade da silva disse...

Como todos sabemos são sempre as mulheres que vindo para as ruas à frente dos carros de combate, ou das bandeiras da fome sinalizamn as vitórias e o que e mais nobre existe no ser humano, não admira também que neste espaço a vossa voz se oiça mais.

Como sabem a Dra. Fernanda e a Estala não sei esconder, nem quero oa meus sentimentos de dor, amor,mais também de raiva, viram a expressão deste modo de ser que não escondo,mas com a certeza de que nunca converti a raiva em ódio e muito menos em perseguição, creio mesmo Estela que ser militar fez-me ainda mais humano.

Vi morrer jovens de que tanto gostava, porque sempre olhei os soldados de um modo muito, muito particular se não de um pai, pelo menos de um grande amigo e de um cidadão igual.
abraços
asilva

Anónimo disse...

Pois, agora a coisa começou a doer. E promete. Cá estou para seguir atentamente a narrativa. Um abraço. luisladeira

Estela disse...

Sim, eu sei que ser militar pode tornar as pessoas mais humanas, mas eu refiro-me aos outros, aos outros a quem a vida militar levou (ou ajudou a levar) para caminhos mais tortuosos...
Estela

Mário Silva disse...

Gostava de publicar uma foto, para entregar ao cidadão Andrade da Silva, de Dezembro de 1971, ao tempo alferes artª. em Lumbala Velha, no leste de Angola.
O meu endereço é "mregadas@sapo.pt".
Um abraço
Mário Silva Cart 3416